“A beleza da terra não é senão um alento, e o homem é apenas uma sombra.”
Depois de longos anos afastada do #ProjetoDickens, resolvi tomar vergonha na cara finalmente retomar a leitura das obras de um dos meus autores favoritos de todos os tempos: Charles Dickens.
Quando penso sobre os motivos que me mantiveram longe dos livros do autor, não encontro nenhum que não seja o tamanho de suas obras – afinal, mais da metade de suas produções possui a singela característica de ter mais de mil páginas. Porém, eu não costumava ser uma leitora que fugia de calhamaços e, de alguma forma, a pandemia me reconectou com esses “pesos-pesados” da literatura (uma vez que ajuda bastante o fato de não precisar carregar um livrão para cima e para baixo).
Aproveitei o ensejo do Victober e retirei a poeira do meu exemplar de Nicholas Nickleby – apenas para lembrar por que gosto tanto da narrativa dickensiana!
Publicado originariamente em formato de folhetim, Nicholas Nickleby começou a ser escrito enquanto o autor ainda trabalhava em Oliver Twist, o que marcou um período bastante produtivo (mas estafante) da vida de Dickens. Apesar de ter apenas 26 anos na época, o escritor já estava se tornando bastante conhecido do público, que demandava mais de suas obras.
“Onde há determinação, há um caminho.”
A obra é um romance de formação que gira em torno do personagem que dá título ao livro. Após perder todo o seu dinheiro no mercado de ações (algo que aparentemente era bastante comum na época, vide a resenha de Hester que publicamos recentemente), o pai de Nicholas acaba falecendo e deixa os dois filhos e a esposa sem meios de subsistência. A única esperança da família é o irmão do falecido, Ralph Nickleby, um rico comerciante que mora em Londres.
Contudo, o que eles não imaginavam é que Ralph não só não teria o menor interesse em ajudar a família de seu irmão, como faria o possível para prejudicar ainda mais a sua situação. Com a fachada de ser caridoso, o homem despacha o sobrinho para uma “escola” de Yorkshire, onde o rapaz irá trabalhar como professor de uma turma de garotos. Mas Dotheboys Hall se revela como uma espécie de orfanato tenebroso e miserável, onde os meninos são tratados de forma sub-humana. O Sr. Squeers, dono do lugar, age como um carrasco implacável e faz de tudo para tirar proveito em cima dos meninos – desde extorquir os seus parentes a até mesmo roubar as suas melhores peças de roupa para dar para o filho.
Não preciso nem dizer que o Sr. Squeers e sua terrível família são alguns dos principais vilões dessa história, certo? E sua vilania vai muito além dos limites de sua propriedade, o que Nicholas não levará muito tempo para descobrir…
“Com a ternura e a afeição destruídas ao nascer, com todos os sentimentos jovens e saudáveis açoitados e negligenciados, com todas as paixões vingativas que podem infestar os corações feridos penetrando sorrateiramente em silêncio até seu âmago, que inferno incipiente se produzia ali!”
Após conseguir deixar o lugar, a vida de Nicholas passa a se cruzar com outros personagens bastante singulares, incluindo uma companhia de teatro (algo pelo qual Dickens tem um grande apreço sendo ele próprio um ator amador), uma caricata família que deseja herdar uma grande fortuna, um doce menino perdido e amigos fiéis bastante inesperados.
Além de acompanhar a saga de Nicholas em busca de oferecer uma vida melhor para sua família, também acompanhamos a trajetória de sua irmã, Kate, uma jovem de bom coração que também se vê como vítima das armações vilanescas de seu tio. Por causa de Ralph, a jovem chega a ser assediada por um homem asqueroso, o que leva até mesmo a um duelo.
Por mais exagerado e inverossímil que algumas ações e personagens possam parecer para o leitor de hoje em dia, o autor destaca o papel denunciatório de sua obra. Em Nicholas Nickleby, Dickens procurou expor os maus-tratos praticados nos internatos de Yorkshire – que se encontravam, inclusive, em meio a um escândalo na época. No prefácio do livro, o escritor afirma que não havia a menor regulamentação nesses locais e que qualquer pessoa mal-intencionada, mesmo sem qualquer formação, poderia abrir uma instituição como essa e ganhar dinheiro à custa de pais (ou outros parentes) negligentes e da vida daqueles pobres meninos.
“É porque as pessoas não se incomodam com isso que gente doente como o senhor continua por aí.”
Um fato que ajudava na impunidade desses malfeitores era a dificuldade de se chegar na região – o percurso era extenso e envolvia uma longa viagem de diligência sob um frio incapacitante. O próprio Dickens, acompanhado de Hablot (o ilustrador de seus textos, conhecido como Phiz), percorreu esse trajeto nas mesmas condições de seus personagens, para sentir na pele o que eles passariam.
Um aspecto cômico nessa história, também citado pelo autor na apresentação da obra, é que o personagem do Sr. Squeers despertou revolta em ditos cavalheiros que se identificaram com o cruel diretor de Dotheboys Hall. (O famoso “qualquer semelhança…”)
Contudo, não dá para ignorar o caráter moralizante que o autor também imprime em seu livro. Assim como os seus vilões são bastante caricatos (na melhor forma possível!), seus heróis são personagens virtuosos, honrados, que não permitem que as suas (muitas) adversidades corrompam o seu caráter. Nicholas é o típico mocinho que vence na vida pelos seus próprios méritos e Kate é a donzela que não pode ser maculada por nenhum agente externo. O seu contraste com personagens como Squeers, Mulberry Hawk ou o próprio Ralph Nickleby é gritante e inspira o leitor a seguir o caminho da virtuose.
Por fim, encontrei em suas páginas mais uma história deliciosa, com uma narrativa encantadora (eu simplesmente AMO a forma como Dickens descreve o cotidiano das cidades) e uma pena afiada, pronta para explicitar as injustiças de seu tempo. Sem dúvida não levarei tanto tempo para me aventurar pela próxima obra do autor!
Ficha Técnica:
Título: Nicholas Nickleby
Autor: Charles Dickens
Editora: Penguin
Páginas: 1.040
País: Inglaterra
Avaliação: 4/5 estrelas