“(…) [um dia] terei que escrever sobre meu pai, sobre a vida dele e sobre essa distância entre nós dois, que teve início em minha adolescência. Uma distância de classe, mas bastante singular, que não pode ser nomeada. Como um amor que se quebrou.”
Já não é de hoje que eu ouço maravilhas sobre a escrita de Annie Ernaux. A autora francesa sempre figurou na minha lista (interminável) de escritores que eu preciso ler, mas em meio a tantas leituras e desafios literários, esse era um encontro que ficava sendo adiado constantemente.
Foi preciso, então, um “empurrãozinho” dos meus queridos colegas do marketing, que me deram três das obras de Ernaux de aniversário, para que eu finalmente transpusesse esse obstáculo e me rendesse à sua escrita. E não podia ficar mais grata por isso ter acontecido: foi amor à primeira linha!
“Apesar de tudo, éramos felizes. Tínhamos de ser.”
Nascida durante a Segunda Guerra em uma pequena cidade da Normandia, Ernaux busca reconstruir personagens e episódios em narrativas memorialísticas, que revelam não só a sua própria história, mas a História de um período e de um lugar.
Em O lugar, sua lupa se volta para seu pai, um homem de pouca instrução que deixou o trabalho operário para tentar a vida como dono de um pequeno café e armazém em uma cidade do interior da Normandia (que, apesar de não ser nomeada no texto, traz todas as características da região onde Ernaux cresceu).
Contudo, ao invés de estruturar a obra com uma linha do tempo linear, a autora optou por partir do momento da morte de seu pai – e do seu consequente retorno ao local de sua infância – para, a partir do fim, refletir sobre o começo.
“Enquanto me esforço para reconstruir a trama de significados de uma vida, levando em conta acontecimentos e escolhas, tenho a sensação de que vou perdendo, na essência, a figura do meu pai.”
Ao longo de suas páginas, o livro nos insere na vida daquela família, comandada por um homem de fortes convicções, mas ao mesmo tempo simplório. Contudo, apesar de Annie tentar desenhá-lo de uma forma impessoal, ela mesma assume a dificuldade em separar aquele indivíduo independente, com sua própria história, da figura de pai – com a carga sentimental depositada pela memória da própria autora.
“Talvez eu escreva porque já não tínhamos mais nada para dizer um ao outro.”
E, para mim, essa mescla entre biografia, memória, história e romance, é o grande – e inegável – encanto da narrativa de Ernaux. Ao ler sobre sua família, é impossível não refletirmos sobre a nossa própria, o que, consequentemente, nos leva também a depositar os nossos próprios registros afetivos sobre as páginas do livro. Em diversos momentos da leitura tracei paralelos entre as situações narradas e aquelas vividas por mim mesma, e terminei a leitura não apenas com saudades do texto, mas com saudades de pessoas e momentos de minha própria vida.
A única forma de descrever o meu sentimento após a leitura é a de que mais do que garantir um espaço da minha memória, esta história sem dúvida conquistou um espaço em meu coração – assim como Annie Ernaux já ganhou um lugar na minha coleção de autores preferidos. Fica aqui a minha forte recomendação para que vocês também vivam esta experiência transformadora de leitura.
Ficha Técnica:
Livro: O lugar
Autor: Annie Ernaux
Editora: Fósforo
Páginas: 72 páginas
País: França
Nota: 5/5 estrelas
Ai que saudade das suas resenhas amiga ❤️
O lugar tbm foi meu primeiro contato com a autora. Ele me deixou nostálgica ao ambiente familiar, todas memórias, mas tbm me preocupou sabe… Sobre os distanciamentos geracionais na minha família, como a gente diminui essa diferença? Ou ela seria de uma forma esperada… Entre os altos e baixos de uma familia…
Lica!! Que bom te ver por aqui! <3
De fato, esse livro toca fundo na gente e nos faz repensar as relações familiares, principalmente com nossos pais e avós.
Eu acho que um certo distanciamento geracional é meio que esperado, pela mudança de pensamento mesmo. Mas também acho que a gente pode decidir se isso vai ser um obstáculo para a relação ou se conseguimos manter esse laço estreio apesar disso...
Beijo grande!